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A DIFERENÇA ENTRE CONSUMO E CONSUMISMO, por Amélia Gonzalez

Homens carregam sacolas de compras_corte690

Marcia me ajuda aqui na limpeza de casa de 15 em 15 dias. Semana passada, chegou feliz porque tinha conseguido comprar um carro depois de juntar dinheiro e de trabalhar muito duro, em várias casas, todos os dias da semana, inclusive aos sábados. Usando o carro para se deslocar, ela ganhou uma hora a mais no seu dia que, mesmo assim, precisa começar quando o sol aparece. Márcia mora num município da Baixada Fluminense e precisa enfrentar a hiper engarrafada Avenida Brasil. Mesmo com a faixa exclusiva de ônibus, aquela via sofre com a quantidade excessiva de carros.
Quando Marcia brandiu as chaves do seu automóvel, ano 2009, pensei em tudo aquilo que os estudiosos em clima e em desenvolvimento sustentável falam. Quanto maior o consumo, mais necessidade de energia, de combustível. Mas, sinceramente, em sã consciência, alguém diria para Marcia: “Você não devia ter comprado o carro porque estará ajudando o planeta a aquecer, o que vai causar mais tormentas como a que se viu na Região Serrana em 2011”? Não, é claro.
Comemorei junto, parabenizei pelo fato de ela não ter se endividado num interminável carnê. E alonguei meus pensamentos sobre o assunto, carentes de alguma razão que transforme a teoria em prática, até o evento desta terça-feira (7), em São Paulo, comemorativo dos cinco anos do Pacto pela Sustentabilidade e convocado pela rede de supermercados Walmart.
Estive como moderadora numa das mesas do evento. No final, quando os executivos já tinham exposto suas razões para assinarem um pacto que implica em iniciativas para ajudar a traçar uma linha mais consciente de desenvolvimento econômico, sugeri uma reflexão. Que eles dissessem pelo menos uma mudança que ajudaria o mundo a ser mais desejável de viver em 2050. Ligia Camargo, gerente de sustentabilidade da Unilever, disse que gostaria de reverter a noção, quase recorrente em nossos dias, de que o consumidor é um vilão. Consumir faz parte, é humano, afirmou a executiva. A questão é como consumir.
Penso que existe uma diferença muito grande entre consumo e consumismo. Marcia, minha ajudante, de fato não pode ser acusada de ser uma consumista inveterada por ter comprado um carro. Não posso dizer o mesmo de um vizinho que troca de automóvel uma vez por ano. E olha que ele só compra aqueles enormes, beberrões.
O Brasil saiu este ano do mapa da fome da FAO, organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura. Além disso, com a evolução de renda dos mais pobres, está também aumentando a base de consumidores. Há críticas nesse sentido, de especialistas que afirmam que o país está criando uma base de endividados. De qualquer maneira, se esses cidadãos que hoje já conseguem entrar para o mercado de consumo – e estão sendo recebidos de braços abertos – tiverem chance de se organizarem, como fez Marcia, juntando dinheiro no lugar de carnês, é possível que não se endividem.
Mas a questão é complexa, merece muito estudo, reflexão. Afinal, estamos falando do consumo também de energia que, como os cientistas já mostraram, será um bem de valor inestimável tanto quanto a água no futuro. Neste post, eu descrevi o mundo sustentável sonhado pelo ambientalista James Gustave Speth, onde o consumismo é trocado pela busca de coisas que realmente tragam bem-estar. É importante que se diga, ainda em defesa de Marcia, que se ela tivesse um meio de transporte público que permitisse um deslocamento sem sofrimento e em menos tempo, certamente seu dinheiro ficaria guardado para adquirir outros bens. Ou, quem sabe, viagens, um bom curso...
Assim, não depende, como vimos, apenas de um “consumo mais consciente”, expressão que tem se tornado recorrente. No caso dos automóveis, os governantes precisam ajudar, ampliando a chance de mobilidade urbana.
Como sempre faço, busquei pensadores que pudessem ampliar minha perspectiva sobre o assunto. Encontrei o artigo “Needs” no “The Development Dictionary”, editado por Wolfgang Sachs. Quem escreveu foi Ivan Iilich, filósofo e escritor austríaco morto em 2002, que faz uma crítica severa ao desenvolvimentismo.
O filósofo passeia pelas necessidades dos humanos, pontuando o momento em que elas se tornaram desejos. “É mais fácil jogar no lixo os aparelhos de ar condicionado ineficazes dos arranha-céus em São João de Porto Rico do que acabar com o anseio por um clima artificial”. A imagem serve para ilustrar o momento em que o homem deixa de considerar a hipótese de voltar a sentir o vento e o calor no rosto. Concordo com você, leitor, se está pensando que hoje é impossível pensar em sentir o calor no rosto sob uma temperatura de mais de 40 graus no Centro de uma cidade grande e de terno. Mas, veja: o filósofo acredita que tudo aquilo que se criou para sustentar a ideia de desenvolvimento (arranha-céus e ternos, inclusive) pode ser entendido como uma era que, a um custo muito grande, tem feito uma cerimônia global para celebrar “o fim da necessidade”.
“Escolas, hospitais, aeroportos, instituições mentais ou de correção, além da mídia, podem ser entendidas como redes de templos erguidas para santificar a desconstrução de necessidades e a reconstrução de desejos em seu lugar. Na era pré-industrial, para muita gente vivendo em culturas de subsistência, a vida era um aprendizado sobre o reconhecimento de limites que não podiam ser transpostos. O solo produzia apenas culturas conhecidas, a viagem para o mercado levava três dias, o filho poderia deduzir seu futuro a partir da vida do pai. Por necessidade só se entendia o que as necessidades devem ser. E, assim, tinham que ser suportadas”.
Com os poderes da ciência e da tecnologia, no entanto, afirma Iilich, surgiu a palavra desenvolvimento, que foi logo traduzida como uma promessa. E os desejos mudaram de status, se tornaram reivindicações quando a necessidade não é satisfeita. Nesse caso, viram falta.
Iilich traça ainda o caminho histórico do homem refletido no contexto de necessidades do discurso oficial de desenvolvimento que começou com o pronunciamento oficial do presidente norte-americano Harry Truman em 1949. Pela primeira vez foi dito que os países ricos deveriam ajudar os países pobres. A história mostra que essa ajuda, muitas vezes, veio acompanhada de uma contrapartida perversa. Hoje, se fala na ajuda dos países ricos aos que já estão perdendo terreno por causa do aumento dos oceanos causado, como já foi provado, pelo aquecimento do planeta. História que segue. E o debate ainda está só no começo.

*Foto: Kimberly White/Arquivo/Reuters

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