“Diário de inverno” (Companhia das Letras, 216 pgs. R$ 44) é a terceira incursão de Paul Auster pela autobiografia, depois de “A invenção da solidão” (sua estreia na literatura, em 1982) e “Da mão para a boca” (1997). Os três livros têm em comum o tom nostálgico-melancólico e, principalmente, a adoção pelo autor de um ponto de vista de espectador da própria vida, o que é explicitado pelo uso da segunda pessoa, como se ele se dirigisse a um outro – que é ele mesmo.
Em um volume de memórias, esse recurso confere à narrativa um estranho distanciamento emocional, uma impessoalidade que é acentuada pelo caráter fragmentário dos textos – que se aproximam, de fato, de um diário). Como se estivéssemos diante de anotações para um futuro romance, e não, justamente, de memórias. Sintomaticamente, lá pelas tantas Auster escreve: “Algumas lembranças são tão estranhas, tão improváveis e implausíveis, que é difícil conciliá-las com o fato de que é você a pessoa que vivenciou os acontecimentos que está rememorando.”

Se a tentativa de decifrar a figura paterna em “A invenção da solidão” evoca os anos da infância, e se o foco temporal de “Da mão para a boca” são os primeiros anos da vida adulta, marcados por um divórcio e pelo desafio de se afirmar como escritor, “Diário de inverno” pode ser entendido como o encerramento de uma trilogia sobre as “três idades” da vida, ainda que não trate apenas de acontecimentos recentes.
Auster alterna digressões sobre cicatrizes e outras marcas do tempo com lembranças afetivas de períodos variados, nas quais sua mãe, que morreu em 2002, ocupa um papel de protagonismo. Mas uma mulher resignada a um casamento com um homem distante e devotada à criação dos filhos, não é exatamente uma personagem complexa ou particularmente interessante, é preciso que se diga; comparado ao retrato do pai feito no primeiro livro da triologia, essa elegia materna tem algo de diluição, de esboço, de rascunho. E Auster ignora solenemente a história da sua única irmã, mentalmente desequilibrada.
A matéria de “Diário de inverno” é o tempo e seus efeitos sobre o corpo humano – o de Paul Auster, particularmente – mas não existe propriamente um eixo narrativo. Compondo uma espécie de catálogo de impressões sensoriais, o autor especula sobre o envelhecimento e a morte, numa série errática de lembranças que entrelaçam o corpo e o passado.
O inverno do título se refere portanto à estação derradeira da vida: Auster lançou o livro aos 64 anos, idade que apresenta como o início da velhice e do declínio inexorável rumo ao fim. O livro melhora quando se torna mais abertamente confessional: por exemplo, quando Auster fala do período em que morou em Paris com o sonho de se tornar um poeta, ou de suas aventuras (e desventuras) sexuais, de suas crises de pânico, do segundo casamento (com a romancista Siri Hustvedt, que aparentemente é uma santa sem nenhum defeito) e outras situações (algumas humilhantes, como o falso ataque cardíaco que teve após comer um sanduíche de atum), que contribuíram para formatar sua identidade como homem e como escritor.

A contingência da identidade é um tema tipicamente pós-moderno, recorrente nos primeiros (e melhores) romances do escritor, que misturavam enredos detetivescos com fábulas sobre a vida urbana, marcados pela ironia e pelo artifício, com histórias dentro de histórias e personagens chamados Paul Auster, duplos de duplos, numa fabulação sem fim, em narrativas milimetricamente elaboradas, de grande complexidade e ao mesmo tempo fluentes. Aqui, porém, o conteúdo parece geralmente banal, como quando ele cataloga as casas em que morou (mais de 20), as viagens que fez ou os pratos que comeu, sem que um fio condutor qualquer diminua a impressão de fragmentos aleatórios reunidos sem que a obra estivesse madura.
Mesmo em seus momentos mais confessionais, “Diário de inverno” trai um caráter estudado, artificial, filtrado pelos recursos literários que o autor tão bem emprega em sua ficção: ao falar de si mesmo, Auster constrói um personagem, por assim dizer, “austeriano”, mais do que propriamente se expõe ao leitor.
Prevalece um tom de ruminação – sobre a morte, sobre a família, sobre a memória, sobre o casamento. Há momentos de grande beleza poética, que os fãs incondicionais de Paul Auster saberão apreciar, mas no conjunto é uma obra menor. Ainda assim, não deixa de ser perturbador pensar que parece que faz outro dia que li, no final dos anos 80, a “Trilogia de Nova York”, extasiado com algo que me parecia inteiramente novo.
O diário de inverno de Paul Auster tem no mínimo esse mérito: o de lembrar aos seus antigos leitores que todos vamos envelhecer e morrer. Memento mori, diz a expressão latina, algo como: “Lembre-se de que você é mortal”. Ou, para usar uma expressão mais atual, no alto valiriano de “Game of Thrones”, Valar Morghulis!
Fonte: g1/ por Luciano Trigo
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