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A mulher que nasceu um dia e morreu um dia antes

Do blog SINCRONICIDADE, do massapeense Vasconcelos Arruda:

Certa vez perguntaram a Clarice Lispector que título ela daria a sua autobiografia. A resposta foi sucinta mas, como sempre, mortal: “À procura da coisa”. A Coisa – o mundo real, neutro e indiferente às construções humanas, nisso incluída a própria literatura – foi, desde seu primeiro romance, Perto do Coração selvagem, de 1943, a grande paixão e o grande inferno de Clarice. Viveu para perseguir esse núcleo de vida pura que nos iguala aos animais e nos despe de nosso manto cultural. Viveu, como ela mesma definiu, para buscar o que se esconde “atrás de detrás do pensamento”. Não foi pouco o que se propôs.
José Castello
[Lispector, Clarice. Clarice na cabeceira: romances / Clarice Lispector; organização, introdução e apresentações: José Castello. – Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 9.]
Fui à cozinha e peguei uma xícara de café: forte, amargo e fumegante, como tem que ser o café, pelo menos em ocasiões como esta, em que me posiciono ante o computador para escrever este texto. É que certas ocasiões exigem um cuidado especial, quase como se estivéssemos prestes a adentrar um templo. Falo de Iniciação. Sim, Iniciação aos grandes mistérios, como a que acontecia aos praticantes do esoterismo em tempos de antanho.
É que vou escrever algumas poucas linhas sobre uma Iniciada. Refiro-me a Clarice Lispector. Sim, porque leio Clarice Lispector com a mesma predisposição e preparo que adoto quando vou ler um texto dos grandes iniciados. A diferença entre nossa escritora e outros iniciados é que, se estes precisaram se filiar a um círculo ou escola esotérica para ter acesso aos grandes mistérios, à primeira isso não foi necessário.
Eu diria que ela passou pelas etapas necessárias à Iniciação de forma espontânea, com aquilo mesmo que a vida foi lhe proporcionando experimentar no dia a dia, tudo inserido no fluxo natural de sua existência. Nem mesmo duas experiências cruciais, a do chamado “Inferno da Iniciação” e a “Experiência do Deserto”, de que falam os grandes místicos, lhe faltaram.
Com relação ao primeiro, atente-se para o que ela afirmou quando se referiu ao incêndio ocorrido em seu apartamento no dia 14 de setembro de 1966, que a deixou em coma:
“[...] o incêndio que sofri há algum tempo destruiu parcialmente minha mão direita. Minhas pernas ficaram marcadas para sempre. O que aconteceu foi muito triste e prefiro não lembrar. Só posso dizer que passei três dias no inferno, aquele que – dizem – espera os maus depois da morte. Eu não me considero má e o conheci ainda viva” (Entrevista ao Jornal da Tarde, 5. fev. 1969. Citado em:  Gotlib, Nádia Battella. Clarice Fotobiografia. – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008, p. 368).
A propósito do segundo, o deserto, escreveu: “Eu fora obrigada a entrar no deserto para saber com horror que o deserto é vivo, para saber que uma barata é a vida. Havia recuado até saber que em mim a vida mais profunda é antes do humano – e para isso eu tivera a coragem diabólica de largar os sentimentos”.
E que experiência iniciática é essa, a que se destina ela, qual é seu anelo? É aquilo a que aspiram os grandes iluminados, o mistério dos mistérios, mas exige para adentrá-lo uma coragem e disposição sobre-humanas, o que leva Clarice a dizer: “ Eu tivera que não dar valor humano à vida para poder entender a largueza, muito mais que humana, do Deus. Havia eu pedido a coisa mais perigosa e proibida? arriscando a minha alma, teria eu ousadamente exigido ver Deus?”
E conclui, como quem sabe que esse Mistério, por ser incomensuravelmente maior que tudo o que se possa conceber, traz sempre implícito um enigma que, em vida, provavelmente nunca será totalmente solucionado: “E agora eu estava diante Dele e não entendia – estava inutilmente de pé diante Dele, e era de novo diante do nada. A mim, como a todo o  mundo, me fora dado tudo, mas eu quisera mais: quisera saber desse tudo. E vendera a minha alma para saber. Mas agora eu entendia que não a vendera ao demônio, mas muito mais perigosamente: a Deus. Que me deixara ver. Pois Ele sabia que eu não saberia ver o que visse: a explicação de um enigma é a repetição do enigma. O que És? e a resposta é: És. O que existe? e a resposta é: o que existes. Eu tinha a capacidade da pergunta, mas não a de ouvir a resposta” (Lispector, Clarice. A paixão segundo G. H. – Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 134).
Não nos surpreenda, pois, ao ler as palavras acima, a advertência feita pela autora na  página de rosto de A paixão segundo G. H. “A POSSÍVEIS LEITORES. Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro não tira nada de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria” Lispector, Clarice. A paixão segundo G. H. – Rio de Janeiro: Rocco, 2009).
Clarice Lispector nasceu no dia 10 de dezembro de 1920, e faleceu no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes de completar 57 anos. Numa entrevista concedida à TV Cultura em 1977, ano de sua morte, afirmou Clarice: “Bem, agora eu morri… Mas vamos ver se eu renasço de novo… Por enquanto eu estou morta… Estou falando do meu túmulo…” (Entrevista à TV Cultura, 1º fev. 1977. Citado em:  Gotlib, Nádia Battella. Clarice Fotobiografia. – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008, p. 443).
Três anos antes, porém, ela já havia renascido, depois de ter passado pela grande Iniciação que uma vida dedicada à busca da expressão do real pela palavra lhe proporcionara. Corolário dessa experiência foi o que escreveu em Água viva, livro que é pura epifania, da primeira à última palavra: “Nasci há alguns instantes e estou ofuscada” (Água viva. Em: Lispector, Clarice. Clarice na cabeceira: romances / Clarice Lispector; organização, introdução e apresentações: José Castello. – Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 191).

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