Abro o jornal e vejo a notícia da decapitação do jornalista britânico por um integrante do Estado Islâmico. No mesmo jornal descubro que, em uma rebelião, cabeças de internos do presídio de Pedrinhas foram cortadas. Saio de casa para a universidade, uma das mais bem conceituadas do país, e ouço diariamente gente falando javanês, sem a menor vontade de conversar, debater ou apenas trocar ideias. Abalada, constato que a barbárie está mesmo aumentando em vez de diminuir, e que o autoritarismo graça por toda parte. Meu único alívio diante da certeza de que o autoritarismo se instalou no mundo e em nosso país, é quando vou tomar um café no botequim da esquina de casa, um pé-sujo, onde o freguês tem sempre razão e as pessoas emitem suas opiniões sem medo de patrulhas. Falam português e não javanês que virou moda pós-moderna.
Por sorte, de vez em quando cai uma pérola em minhas mãos. Recebi antecipadamente o livro "Tribunos, profetas e sacerdotes: intelectuais e ideologias no século XX", de Bolívar Lamounier, com o amável convite para participar da mesa de debates durante o seu lançamento. Fiquei nervosa, como sempre. Cá com meus botões antes de abrir a primeira página pensei: não vou entender nada. Faltei a muita aula de Ciência Política. Sou antropóloga e me vejo sempre em apuros quando resolvo me meter a ler os cientistas políticos. Mas vocês não sabem o prazer que deu ir lendo as linhas que desvendavam uma língua afiada e clara, com figuras de linguagem tão apropriadas! Vou pedir umas emprestadas.
O livro segue um modelo engenhoso para pensar os intelectuais, o liberalismo e o antiliberalismo. Intelectuais definidos como gente letrada, “com nível de escolaridade muito superior ao da média da sociedade. Dele espera-se reflexão, elaboração, desenvolvimento. Um enriquecimento contínuo, a ser feito em colaboração e muitas vezes em competição com seus pares. O intelectual tem educação superior, valores públicos e participação política.”
Bolívar classifica eurísticamente três tipos de intelectual: o tribuno, o profeta e o sacerdote. “O tribuno, semelhante ao advogado, engaja-se na defesa de pessoas, grupos sociais, ou seja, em situações dadas. O profeta é o portador da boa nova: a chegada de um novo mundo, ao qual ele promete conduzir aqueles que compartilharem sua receita de salvação. O sacerdote é o intérprete autorizado dos livros; é aquele que invoca os cânones sagrados a fim de separar os campos do bem e do mal, do permissível e do não permissível.”
Para pensar o intelectual não só no nível individual, mas também no nível coletivo, Lamounier constrói três tipos, digamos ideais, de comunidade intelectual: pensadores isolados, intelligentsias e comunidades academicamente centradas. E insere o intelectual numa conjuntura histórica isolando três focos sucessivos de atenção intelectual – a construção do Estado, a industrialização e a tematização da democracia. Simples, porém foi preciso fazer uma exploração comparativa entre Rússia, Alemanha, Estados Unidos e Brasil.
O leitor, mesmo não muito familiarizado com o mundo intelectual dos três primeiros países no século XX, não deixa de seguir o raciocínio pelo qual Lamounier explora esses três níveis de comunidades intelectuais e de tipos de intelectuais, assim como seu pensamento sobre a construção do Estado, a industrialização e a democracia.
Esse meu resumo, um tanto tosco, não faz jus à forma com que Lamounier enfrenta a dificílima tarefa e, sobretudo, a abrangência do projeto intelectual que pretendeu esboçar. Em linhas gerais, os dois primeiros casos analisados, Rússia e Alemanha representam o antiliberalismo por excelência, enquanto os Estados Unidos é nitidamente liberal. O caso brasileiro, nessa comparação, fica quase no entremeio. A análise sobre Oliveira Vianna e Sergio Buarque de Holanda, nos capítulos 8 e 9, explicita os limites a que podem chegar o antiliberalismo e o liberalismo no Brasil do século XX.
Não vou sintetizar o maravilhoso esquema traçado, mas é preciso ressaltar a leitura corajosa que Lamounier faz de Oliveira Vianna, decantado por alguns e que exerceu influência tanto sobre intelectuais de direita quanto de esquerda no Brasil, merecendo estudo, de Wanderley Guilherme dos Santos. Lamounier discute com Santos e ressalta o antiliberalismo, o autoritarismo de Vianna e ainda sua falta de base empírica. Oliveira Vianna pouco saiu de Niterói, onde viveu, e sua construção da sociedade rural não se baseia nem em pesquisas e nem muito menos em algum tipo de vivência. Segundo a versão antiliberal de Oliveira Vianna é preciso um Estado forte para gerir os atrasados, retrógados e broncos chefes de clãs rurais sempre em guerras entre si. Vianna escreveu isso justamente no período em que estava ocorrendo a maior transformação na produção do gado no Brasil, e nem de longe suspeitou dessa enorme empreitada. A versão da guerra clânica entre chefes rurais foi incorporada, sem crítica, por muitos intelectuais.
Para o autor que escreveu o belíssimo "Moinho, esmola, moeda, limão: conversa em família" (Lamounier, 2004), onde une biografia e história sem nunca se desviar do cerne da questão ao interpretar pontos fundantes da história brasileira, sobretudo a vida interiorana de Minas na primeira metade do século XX, a obra de Oliveira Vianna deve ter sido mesmo uma espécie de soco no estômago.
O prêmio do leitor é chegar a Sergio Buarque de Holanda porque aí está uma versão que talvez não tenha passado despercebida por alguns, como Roberto DaMatta, mas que Lamounier elabora de forma a elucidar como as ideias não estão fora do lugar, por assim dizer, e, como eu diria, como os modernistas trouxeram uma lufada de ar fresco a partir da arte e da literatura, certamente, mas por meio de uma interpretação com base no liberalismo político. Sergio Buarque de Holanda, é, para Lamounier, um farol a indicar que há esperança para a vitória da ideologia liberal em nosso país, hoje imerso num mar de interpretações antiliberais e autoritárias. Basta ouvir os programas de propaganda eleitoral para temer pelo futuro.
Não entendo de ciência política como deveria e por isso aprendi muito com o novo e ousado empreendimento intelectual de Lamounier. Aprendi mais ainda porque Bolívar não me deixou, nem um minuto sequer, me perder da leitura, pois mantém uma linha condutora do início ao fim do livro. Quase como um filme, o leitor não deixa de imaginar-se também no presente da vida brasileira. Recomendo a leitura a todos, sobretudo aos letrados que têm valores públicos e participação política.
Fonte G1
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