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Cartas inéditas reunidas em livro revelam os altos e baixos de Carlos Lacerda

Carlos Lacerda – Cartas: 1933-1976 reúne sua correspondência ativa
“Ah, se o lessem e o entendessem!”, escreve Carlos Lacerda em carta a Otto Lara Rezende de 24 de junho de 1970. O mesmo pode ser dito sobre o próprio Lacerda, figura controversa que custa a ser digerida pela posteridade, vítima de clichês e preconceitos ideológicos que reduzem a complexidade de sua trajetória intelectual e política a duas ou três sentenças sumárias. Destino injusto para quem, como afirmou o historiador José Honório Rodrigues, foi o civil que mais influenciou os rumos da História brasileira entre 1945 e 1968. Não bastasse sua atuação política, foi um intelectual consumado e escreveu dezenas de livros, como “O Poder das Ideias”, “O Cão Negro” e “Palavras e Ação”, além dos dois volumes de correspondência “Minhas Cartas e as dos Outros” e dos póstumos “Depoimento” e “Discursos Parlamentares”. Foi também tradutor de obras de Shakespeare, John Kenneth Galbraith e da clássica biografia de Thomas Jefferson escrita pelo diplomata inglês Francis W.Hirst. Mas hoje Carlos Lacerda é pouquíssimo lido, e menos ainda compreendido.

Volta e meia, contudo, ele teima em reaparecer como personagem inescapável para se entender o Brasil de seu tempo. Por exemplo, no cinema: em diferentes momentos de sua vida, ele está presente em dois filmes recentes: “Flores raras” (2013), de Bruno Barreto, e “Getúlio”, de João Jardim, este ainda em cartaz. E o baú de seus escritos parece não ter fundo: o arquivo de Carlos Lacerda na UnB contém mais de 60 mil itens entre cartas, recortes de jornais, fotografias, documentos pessoais e oficiais, muitos ainda por explorar.
O lançamento de “Carlos Lacerda – Cartas: 1933-1976” (Editora Bem-Te-Vi), que reúne sua correspondência ativa que permanecia inédita em livro, reafirma seu lugar peculiar na nossa História, lançando novas luzes sobre suas qualidades e defeitos, seu temperamento e sua personalidade, destacando sua vocação para a polêmica e sua maneira intransigente de atacar seus inimigos (o “lacerdismo” já foi definido como um moralismo seletivo, voltado contra os adversários do momento, por meio de campanhas jornalísticas devastadoras, ainda que  baseadas em indícios frágeis e conclusões precipitadas). Organizado pelo falecido Claudio Mello e Souza e por Eduardo Coelho, “Cartas” está dividido em quatro seções: “Família”, “Amigos”, “Autores e livros” e “Política”. Inevitavelmente desigual no conteúdo e no estilo, dada a diversidade de destinatários e contextos, o livro vale sobretudo por revelar o que Lacerda pensou e como se comportou em momentos decisivos e controversos, como as semanas imediatamente anteriores e posteriores ao golpe de 1964.
Carismático e sem papas na língua, ciclotímico no trato com parentes e amigos, artistas e jornalistas, intelectuais e homens de Estado, Lacerda se mostra ora afetuoso ora agressivo, ora sereno ora destemperado. A primeira parte reúne basicamente cartas escritas entre 1937 e 1944 a Leticia Abruzzini, namorada e depois paciente e dedicada esposa de Carlos Lacerda por mais de quatro décadas. Iniciadas com “Minha gatinha” e variações, e incluindo frases como “Eu sou o seu mesmo gato”, elas comprovam o que Fernando Pessoa afirmou sobre as cartas de amor: são sempre ridículas. Nos primeiros anos desse período, vale lembrar, Lacerda era comunista (aliás seu nome, Carlos Frederico, era uma dupla homenagem prestada por seu pai a Karl Marx e Friedrich Engels). Já a seção referente aos amigos reúne, naturalmente, as cartas escritas em tom mais informal e desabrido, para destinatários como Afonso Arinos de Melo Franco, Juraci Magalhães e Vivi Nabuco, sobre temas tão díspares quanto o fuzilamento de terroristas na Espanha (que Lacerda justifica) e os bastidores das disputas políticas intestinas na UDN.
Carlos Lacerda
As cartas das duas últimas partes do volume são as mais interessantes e reveladoras do ponto de vista histórico e documental: elas demonstram que Lacerda, com sua cultura e eloquência extraordinárias, levou para a política seu estilo, sua paixão e seu talento como jornalista. Infelizmente, porém, ele é hoje muito mais lembrado por aquilo que destruiu que por aquilo que construiu. É verdade que teve participação direta na deposição de cinco presidentes da República: Getúlio Vargas, Carlos Luz, Café Filho, Jânio Quadros e João Goulart. Mas foi também um administrador notável, responsável por um leque de realizações como governador da Guanabara até hoje insuperado no maltratado Rio de Janeiro, tendo resolvido com agilidade e eficiência graves problemas de habitação, abastecimento, transporte e saúde.

Destaca-se na terceira parte a sequência de cartas enviadas, entre 1933 e 1941, ao modernista Mario de Andrade – incialmente cordiais e cheias de admiração e respeito, depois crescentemente insolentes e por fim agressivas. A ruptura se explicita numa carta em que Lacerda acusa o escritor de ter cometido “uma infâmia” (Mario insinuara que ele se “vendera” aos americanos): “....não me habituara a ver em você um exibicionista, capaz de insinuações e de afirmações caluniosas pelo simples prazer de brilhar”. Antes dessa briga, porém, Lacerda, ainda comunista, chegara a cobrar um maior comprometimento do autor de “Macunaíma” com o marxismo. Lacerda também manteve uma correspondência profícua com Otto Lara Resende,  Érico  Veríssimo (a quem escreve uma longa carta analisando de forma primorosa o romance “Solo de clarineta”, então recém-lançado), Josué Montello, Gilberto Freyre, Rubem Braga, Pedro Nava, Sobral Pinto e até mesmo os americanos John dos Passos e Henry Kissinger. Numa carta famosa, aliás, Drummond tece os maiores elogios ao político.
Vale destacar também a sofreguidão com que Lacerda passou a combater o comunismo que abraçara na juventude: ele faz críticas severas a um conhecido simpatizante do Partidão, expondo suas ideias sobre o ideário marxista: “No comunismo, há a mistificação de ideais caros ao homem, e a matéria-prima que se usa para fins degradantes é a Justiça. A mentira é uma injunção a que o Partido obriga, desde que se mantenha a veracidade para com ele, Partido.“ Afirmou, ainda que tal doutrina levaria “a uma ditadura pior do que as outras, porque muito mais organizada, e, portanto, muito mais difícil de derrubar".
Não cabe aqui detalhar a participação de Lacerda em todas as crises políticas e institucionais das décadas conturbadas em que viveu – a maioria delas citada de forma tangencial nas cartas. A correspondência relativa a dois momentos, contudo, tornam o volume valioso, sobretudo em sua quarta parte. Primeiro, em 1961, as cartas em que destila seu ódio por Juscelino Kubitschek, como aquela dirigida a Magalhães Pinto, então governador de Minhas Gerais, na qual enumera as razões pelas quais a UDN não deveria apoiar a candidatura de JK ao Senado: “político notoriamente desonesto, cujo inconfessável enriquecimento seu e de seus amigos constitui uma afronta ao país”; “apóstolo da inflação e profeta da corrupção”, “maior inimigo que o meu estado já teve” etc.
Segundo, a evolução de visão de Lacerda sobre o golpe de 64 e o regime militar subsequente, à medida que ficava claro que este se distanciava radicalmente dos rumos que ele previra. Lacerda tinha a convicção de que a ditadura seria provisória e de que seriam realizadas eleições presidenciais em 1965 – nas quais ele seria candidato pela UDN e provavelmente vencedor. Mas apenas quatro meses depois do golpe, diante das manobras para a prorrogação de mandatos, ele previu, em carta melancólica a Bilac Pinto, o “prólogo da próxima ditadura de uma sociedade anônima de políticos personalistas e militares”. Não deixa de ser uma ironia que o projeto de vida de Lacerda de chegar à Presidência tenha sido frustrado pelos desdobramentos do golpe que ele inicialmente apoiou. Sua crescente decepção se manifesta em cartas azedas dirigidas ao presidente Castelo Branco: em dezembro de 1968, já considerado um inimigo do (uma ameaça ao) regime, Lacerda foi uma das primeiras vítimas do AI-5: passou uma semana preso, foi solto após fazer greve de fome e em seguida cassado, tendo todos os seus direitos políticos suspensos por dez anos. Banido da vida pública aos 56 anos, morreu como um proscrito aos 63, em 1977 (antes portanto da Anistia), distante do poder que foi sua obsessão permanente. 
Fonte: Blog do Noblat
    

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