Eu estava só, mas via o repulsivo Futuro brasileiro, preparado por séculos de atraso
Estou
na clínica especial do Nada aqui neste ano remoto do futuro. Futuro
de quê? Futuro de um futuro que o Brasil esperava há vários
séculos. Essas clínicas são chamadas hoje de “zonas de
esquecimento”; viraram “hype” há mais de um século e hoje
abundam. Os sujeitos entram para perder todos os sentidos. Fica
apenas a memória que, aos poucos, sem ajuda do tato, gosto, cheiro,
visão, e audição, vai se transformando numa leve fonte de
murmúrios, em lapsos de visões, em tênue brilho de lembranças e
depois, o silêncio do nada. Muitas clínicas são arapucas e as mais
baratas apenas jogam os pacientes numas salas vazias e deixam-nos na
mistura de restos de comida e excrementos. Ninguém reclama. Mas, eu
vivo na melhor: “Le Néant”, que as famílias visitam para
verificar o tratamento — é impecável no trato dos corpos
sorridentes, murchos e mudos.
Hoje,
inexplicavelmente, me encontro na rua com sol batendo em meus olhos e
volta a mim uma enxurrada de memórias que eu sempre evitara. Como
saí? Em que ano estou? Minha lembrança mais antiga jaz no deserto,
quando o Califado Islâmico tomou conta do Oriente Médio, chegando
até as bordas de Israel-Palestina, já considerada “área
insolúvel” e que virou parque temático. Muitas terras viraram
temáticas também: a desolação de Nueva Iork, depois das nuvens de
“antrax” na Broadway, o Buraco Iraque, depois da bomba do
ex-Paquistão — hoje Talibânia — e o deserto de Tokyorama,
província da China...
Mas,
vou me ater às memórias do Brasil.
Sei
que há muitos anos o futuro do país se delineou. Foi logo depois da
reeleição de uma mulher... Esqueço-lhe o nome... Sei que, depois,
o famoso Lula sucedeu-a em 2018, continuando em 2022, criando uma
dinastia de si mesmo, reeleito em vários mandatos, até 2034, quando
ele já não falava mais e tinha sido mumificado num carro móvel de
vidro que desfilava entre a multidão de fiéis ajoelhados. A maioria
do povo semianalfabeto celebrava a realização do projeto do seu
partido, uma espécie de populismo pós-moderno (como chamavam) feito
de pedaços de getulismo, chavismo e outras religiões. Quando se
iniciou a decomposição, seu corpo foi entronizado no Museu Bolívar,
um palácio de mármore vermelho desenhado por Oscar Niemeyer, tendo
como curador Gilberto Carvalho, 108.
Nesta
época o velho Brasil tinha renascido, como rabo de lagarto. Voltara
a correção monetária sob uma inflação de 2200 por cento, um
flashback do período Collor, agora representado por seu neto na
grande aliança ainda presidida por Sarney, 117, que visava unir
partidos no programa nacional de “decrescimento”, já que a
democracia se revelara um antigo sonho grego impossível. Todo o
projeto do “lulismo” tinha dado frutos depois de tantos anos no
poder. “Podres poderes!” — rosnavam alguns poucos inimigos,
urubus complexados. Tinha-se atingido o sonho glorioso de socialismo
“puro”, onde só havia o Estado sem sociedade em volta. Era
assim.
O
MST tinha finalmente desmontado a maldita agroindústria, as
manifestações de junho viraram uma data popular, como festas
juninas animadas por “black blocks”, considerados agora “guarda
revolucionária”; a Imprensa tinha acabado, graças a proibição
de papel, enquanto ex-jornalistas gritavam nas ruas e distribuíam
panfletos mimeografados.
Foi
nessa fase que houve o Segundo Crash da Bolsa de Nueva Iork, entre
nuvens de suicidas e filas de desempregados.
Aqui
foi uma surpresa. O Brasil quebrou e nada aconteceu. Houve, claro,
legiões de famintos atacando os supermercados, mas logo ficou claro
que a miséria é autorregulável. Muito simples: a fome diminui a
população, dado benéfico para a incrível falta de comida,
provocada pela decisão do Governo de jamais cortar gastos fiscais.
Nossos aviões e navios passaram a ser confiscados regularmente pelos
países do Império Neoliberal, o que foi bom para desonerar gastos
de manutenção.
Foi
então que se começou a falar em um novo lema: “Ordem sem
Progresso”, no seio de um novo movimento de salvação nacional: o
“Recua Brasil!”. Entendêramos finalmente que o Brasil é um
“acochambramento” secular e que isso não é um defeito, é nossa
grandeza fabricada por séculos de escravismo, de burocracia e de
corrupção endêmica.
A
nova “república” proclamava: “Vamos assumir nosso atraso,
chega de progresso!”. Foi outro grande alívio o fim da angústia
de progresso que oprimia os brasileiros: a Paz é a desistência dos
sonhos de felicidade.
Daí,
veio o movimento “Desiste Brasil”, organizando o antigo caos em
ilhas, em zonas de atraso. Um dos sucessos foi o PEP, “Plano de
Extermínio de Periferias”. No início, alguns humanistas
protestaram mas, depois, se acostumaram com o fechamento das favelas
com muros de concreto, como em Gaza-Auschwitz. Outro grande programa
foi o PROCU (Projeto de Criminalidade Unificada), que mapeou as
máfias todas, a evangélica, a ruralista, hospitalar, a de
traficantes, formando um arquipélago de áreas exclusivas com regras
de matança mais controláveis. Sem falar em iniciativas de vanguarda
moral como a COPUT (Cooperativa de Prostituição Infantil), que
organizou as meninas de rua e incentivou o turismo sexual de que
tanto dependemos.
Isso,
além do PROCRACK e do PROMERD (cagadas genéricas) e a PROLIM (venda
de liminares “a priori”). Criou-se o “Orçamento Espoliativo”,
que os congressistas adoraram, com sete novos necrotérios em Alagoas
e nove clínicas essenciais de cirurgia plástica no Piauí, de onde
veio também a bela ideia da “Comunidade Sossegada”, que
distribui Lexotans aos retirantes da seca.
Mas,
foi aí que comecei a tremer. Olhava os outros do meu canto: pareciam
tão felizes... Sim, mas de vez em quando eles entravam num choro
meloso, um uivo desesperado como as sirenes que circulavam em Nueva
Iork, no século 21. Meu terror foi aumentando. Eu estava só, mas
via o repulsivo Futuro brasileiro, preparado por séculos de atraso.
Corri de volta à minha “zona de esquecimento”, a “Le Néant”,
mergulhei no silêncio dos cinco sentidos e cego, surdo e mudo, pude
finalmente descansar no nada.
Leia
mais sobre esse assunto
em http://oglobo.globo.com/cultura/memorias-do-futuro-13411187#ixzz38sb13pIo
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