Processos de impeachment são hoje corriqueiros na América Latina. Vira e mexe, um presidente da República é impedido. Mas nem todos são iguais. Ao contrário, há impeachments muito diferentes de outros.
Até o fim do século passado, eram raros. A onda só começou no início da década de 1990, quando saíram de moda osgolpes militares. Proliferaram e se tornaram comuns apenas a partir de então. Antes, valia uma regra simples: quando as elites achavam indesejável um presidente, convocavam as Forças Armadas e removiam o problema. Não há um caso de presidente latino-americano destituído por militares por fazer um governo antipopular. Todos os derrubados incomodavam “los que mandan”.
A solução parecia boa, mas envelheceu. Norte-americanos e europeus toleravam os generais por achá-los úteis no mundo polarizado da Guerra Fria. Depois da queda da União Soviética, os fardados perderam a serventia e deles só restou a imagem de truculência e breguice.
Além disso, à medida que a economia dos países latino-americanos se modernizava, se desenvolvia e tornava mais complexa a estrutura social, com uma nova classe trabalhadora e novos setores médios, o recurso a golpes e ditaduras tornou-se disfuncional. A palavra de ordem na região passou a ser redemocratização. Nos moldes latino-americanos, bem entendido. Nada que efetivamente ameaçasse o velho edifício de privilégios e reservas de poder que resiste ao tempo em nossas sociedades.
Um dos maiores especialistas em impeachments presidenciais modernos na América Latina é Aníbal Pérez-Liñán, da Universidade de Pittsburgh. É dele a conta a seguir: entre 1990 e 2004, nada menos que seis presidentes enfrentaram processos deimpeachment no Brasil, Venezuela, Colômbia, Equador e Paraguai. Desses, quatro perderam o mandato, um foi destituído pelo Congresso, que considerou menos traumático para o país proclamá-lo louco, e apenas um manteve-se no cargo, mas de mãos atadas e sem poder.
Houve também alguns quase impedimentos. No Peru, um presidente fugiu para não ser julgado e houve outro no Equador que se safou, mas caiu no ano seguinte. Sem contar os três chefes de governo que tiveram de renunciar na Argentina e na Bolívia, ante sublevações parlamentares e protestos civis que, provavelmente, redundariam em deposições. Todos somados, foram 11 quedas de presidente em 15 anos, quase uma a cada 12 meses.
A canadense Kathryn Hochstetler, ao estudar o fenômeno, identificou um elemento fundamental nessa onda de impedimentos presidenciais característicos da história latino-americana daquele período. Coerentemente com os tempos de redemocratização em curso, foram processos em que “(...) os protestos de rua jogaram papel decisivo na determinação de quais presidentes iriam ser efetivamente derrubados, o que sugere que os movimentos sociais haviam se tornado o novo 'poder moderador' nos regimes civis”.
Nas palavras do professor Leon Zamosc, da Universidade da Califórnia, aqueles foram “impeachments populares”, nos quais a mobilização de trabalhadores, camponeses, donas de casa e estudantes forçou o sistema político a agir. Em todos os países onde ocorreram (Brasil, Venezuela, Equador, Bolívia, Paraguai e até na Argentina e no Peru), anunciaram a mudança que chegaria dali a alguns anos, com as vitórias eleitorais de partidos trabalhistas.
De 2005 para cá, a história dos impeachments na região tem sido outra. Todos os exemplos recentes o atestam: o que aconteceu no Paraguai, este em curso no Brasil e o anunciado na Venezuela.
De maneira simples, poderíamos designá-los como impeachments antipopulares. A pantomima parlamentar que derrubou Fernando Lugo no Paraguai, as manobras políticas, empresariais e midiáticas que provocam a queda de Dilma Rousseff e a investida que pode levar ao impedimento de Nicolás Maduro na Venezuela são o inverso do acontecido na era dos impeachments populares.
No conteúdo e na forma, esses de agora têm parentesco estreito com os golpes militares. Reinstalam no poder velhas oligarquias, subtraem direitos, implementam agendas regressivas na política, na cultura e na convivência social e levam a retrocessos nas políticas públicas. Mas se apresentam fantasiados de legalidade, como seus antecessores faziam. No Brasil, até na retórica se parecem. Aqueles que chamaram o golpe de 1964 de “revolução” hoje dizem que o impeachment de Dilma “não é golpe”.
Certo é: assim como certos impeachments descortinam o futuro, outros fazem girar para trás a roda da história.
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