A palavra de ordem não era derrotar o capitalismo? Pois agora estão conseguindo cumprir
No Brasil, qual a diferença entre o comunismo de
antigamente e o comunismo de hoje? Só uma: hoje eles estão no
poder. Essa é a diferença principal. Na oposição são ardorosos
sabotadores, no poder são um desastre administrativo. E se dedicam a
sabotar o capitalismo mesmo dentro do poder capitalista. Como eles
costumavam dizer, essa é a “contradição principal” deles: como
ser contra o regime e governá-lo ao mesmo tempo?
A outra diferença entre ontem e hoje é de
sentimentos: antes havia sim uma esquerda romântica, como vi e vivi
nos tempos de estudante na UNE. A esquerda não era corrupta. Hoje a
esquerda é só um pretexto para o petismo, o lulismo e o banditismo.
Naquela época, não. Nosso romantismo era meio
babaca, mas era a única porta para entender o mundo.
Nós éramos mais “puros”, mais poéticos, mais
heroicos que os meus colegas de PUC, todos já de gravatinhas
adultas. Como era bom se sentir acima dos outros, não por
competência ou cultura, mas por superioridade ética. Os operários
eram nossa meta existencial. Para nós eles eram o futuro da
Humanidade. Nas oficinas do jornal estudantil que eu fazia,
crivavam-nos de perguntas e agrados, sendo que os ditos operários
ficavam desconfiados e pensavam que nós éramos veados e não
fervorosos “revolucionários”.
Naquele tempo não era possível pensar de outro
jeito. De Sartre a Brizola, não havia outra ideologia disponível. A
guerra fria dividia o mundo em duas facções, e a tomada do poder de
Fidel Castro inebriou nossos desejos. Mesmo delirando em utopias,
queríamos verdadeiramente, romanticamente salvar o país, contra o
“imperialismo americano, o latifúndio e a direita espoliadora”.
Não havia espaço para outras ideias, e quem ousasse pensar
diferente era canalha, lacaio dos americanos. Por exemplo, Raymond
Aron era de “direita” porque discordou do Sartre, pois esse
incitava seus leitores para agir; Aron ensinava-os a pensar. Como
acreditávamos nessa dualidade, ela virou uma verdade incontestável.
E essas “verdades” criaram uma nova linguagem que praticávamos
com fé e determinação. Em vez dos fatos, a linguagem bastava e nos
movia. A linguagem ignorava o mundo real, chato e complexo demais
para a mutação histórica que faríamos pois, afinal, éramos os
“sujeitos da história”. Só as palavras simplistas explicavam
nossa visão de mundo: alienação, massa atrasada, massa avançada,
conscientização, sectarismo, aventureirismo, reacionarismo,
entreguismo, proletariado, democracia burguesa e a palavra sagrada
que tudo justificava: o “povo”.
E é impressionante a manutenção das mesmas ideias
de 50 anos atrás. Éramos implacáveis com as tentativas de
conciliação; um dia, o próprio Costa e Silva aceitou receber uma
delegação de estudantes. Nada aconteceu porque nós, na porta do
Planalto, nos recusamos a vestir paletós. Nossas certezas eram tão
sólidas que me lembro de dizer, no dia 31 de março de 1964: “Oba!
Já derrotamos o imperialismo americano; agora só falta a burguesia
nacional!” No dia seguinte, a UNE pegava fogo e surgia o anão
verde-oliva Castelo Branco, o novo ditador.
Como era fácil ignorar a realidade quando se é da
oposição, como era (e é) moleza tramar um programa político sem
ter de administrar nada. Os românticos esquerdistas achavam que
administrar era coisa de capitalistas (e ainda acham) pois, no
desespero da zona geral, tiveram agora de contratar um “neoliberal”
para tentar salvar um país quase em “perda total”.
Na época, tudo fazia sentido para nós, sentido
calcado em palavras-chaves que descreviam a vida, o país, as
tragédias mundiais, a subestimação da resistência daquele mal
chamado “capitalismo” que tudo descrevia. O capitalismo era
tratado como uma pessoa: “capitalismo hoje acordou de mau humor, o
capitalismo tentou nos enganar outro dia, o capitalismo está
mentindo etc.” Nunca entenderam (como hoje) que o capitalismo não
é um regime político, mas um modo de produção — mal ou bem, o
único que ainda funciona nesse mercado devastado por crises.
O socialismo utópico ou não era a única ideologia
que movia o mundo e que agora justifica a destruição do Estado e do
país que os petistas estão perpetrando. De certa forma, essa cagada
que aprontaram (perdoem a vulgaridade) foi uma vitória.
A palavra de ordem não era derrotar o capitalismo?
Pois agora estão conseguindo cumprir sua utopia: derrotá-lo (e o
Brasil junto) sem terem nada para botar no lugar. É espantosa a
capacidade de errar dessa gente. Mas para eles, na pior tradição
hegeliana, o “erro” é apenas um acidente de percurso. O erro é
apenas uma contradição negativa e passageira. Nesse tempo, as
reuniões eram incessantes e insuportavelmente longas. E era o mesmo
papo de agora no PT: precisamos falar com o povo, com movimentos
sociais, sindicatos e (uma palavra que me deprimia) “associações
de bairro”. Eu pensava: “Que será isso? Será que querem
conscientizar minhas tias?”. Nas infinitas reuniões todos falavam
inflados de certezas e ao final se perguntavam: o que fazer? Ninguém
sabia. Mas continuávamos firmes militantes do nada, sem saber para
onde ir, porque ter dúvidas era “revisionismo”. É como hoje;
ver o Rui Falcão falando até me emociona, pois é uma viagem no
tempo. Não havia espaço para os males internos e seculares do
Brasil; tudo era culpa dos inimigos externos (como hoje — não é,
Dilma?).
Hoje já estão no “volume morto”, como definiu
o Lula num raro acesso de autocrítica, mas continuarão persistindo
na marcha da insensatez. Eles não mudam nunca.
Nunca me esqueço de um debate do grande intelectual
“aroniano” José Guilherme Merquior com dois marxistas na TV. Os
dois falavam sempre dos erros da esquerda, mas considerados apenas
como “percalços” de uma marcha triunfal para o futuro. Eles
diziam, batendo no peito: “Erramos no stalinismo, na Hungria, em
Praga, aqui erramos em 1935, 1964, em 1968, mas continuaremos
lutando.” Merquior respondeu na lata: “Por que vocês não
desistem?”
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/o-volume-morto-16751972#ixzz3fsCmoezl
© 1996 - 2015. Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A. Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização.
Comentários
Postar um comentário