O momento
pré-eleitoral expõe uma inversão carnavalesca. Um igualitarismo e
uma descentralização somente admitidos nos eventos liminares
desregrados ou orgiásticos quando Apolo, o controlador dos
acontecimentos, cede o palco a Dionísio, o revelador.
De
saída, vale mencionar a mudança dos poderosos que — bem vestidos
e protegidos, os que sabem tudo sobre o Brasil — transformam-se em
profetas e pedintes. É com o coração na mão que nós os vemos
fantasiados de gente simples, ouvindo eleitores em locais insalubres
e perigosos. Em botequins baratos, a comer pastéis ou traçando com
indisfarçável falta de jeito um bandejão.
Essa
saída dos palácios e partidos (com seus protocolos protetores) para
mergulhar nos braços do populacho é dramática, mas é a prova de
que alguns desses profetas amam esse “povo” de coração. Quanto
mais não seja por mero reconhecimento, porque é dele que vivem,
enriquecem, fazem suas revoluções e morrem e é para ele que
profetizam.
São
poucas as promessas que fecham com a realidade, mas, como em política
“vale tudo”, todos tentam convencer que há um mundo novo a
nascer de suas mãos.
De
recebedores ricos, tornam-se modestos passistas. Visam acima de tudo
aos votos dos desvalidos e, como não trabalham, focam, fascinados, o
“trabalhador”. O fato, porém, é que, uma vez vitoriosos e
“arrumados”, esses profetas da mudança, da honestidade e da
revolução tornam-se “políticos” e viram amigos dos seus
inimigos e compadres e comparsas dos seus exploradores, de modo que
tudo muda, menos a “política” cuja promessa era justamente
mudar.
Vindo
de cima ou de baixo, nenhum eleito recusa o palácio, as mordomias e
os milhares de cargos que pode preencher nomeando por mérito ou —
e essa é uma complicação — simpatia, aparelhamento, parentesco
ou no roubo puro e simples em nome do partido.
É
tocante.
Havia
um desses candidatos que, após visitar os morros, sentia-se “sujo”.
Tal como um brâmane — esse ser que habita todos os “superiores”
deste nosso Brasil da desigualdade — era somente após um banho que
ele ficava à vontade com seus partidários e amigos. Mas muitos,
advirto, sentem-se realmente à vontade ao lado do povo pobre, embora
o cargo que desejam, com suas incríveis vantagens financeiras e a
sua roupagem aristocrática (as “mordomias”) venha
contraditoriamente tirá-lo da esfera dos desvalidos.
Não
quero estigmatizar os candidatos que surgem na minha televisão como
um patético álbum de figuras dignas de um Lombroso no pior método
de propaganda eleitoral do planeta pago com dinheiro público. Desejo
apenas acentuar essa carnavalização da autoridade obrigada a
confrontar-se pessoalmente com a sua obra: a rua esburacada, o esgoto
a céu aberto, o mar e os rios emporcalhados, a miséria chocante dos
que lhes pagam um grandioso estilo de vida. De todos os idiotas que,
de tempo em tempo, retornam ao ato eleitoral tendo como motivo um fio
de esperança ao lado das grossas algemas das profecias. E dos
últimos escândalos...
Exatamente
como num desfile carnavalesco no qual os pobres surgem magicamente
fantasiados de felicidade, a fase pré-eleitoral faz o arrogante
virar humilde; o insincero tornar-se um marco de honestidade e —
pasmemos todos! — os que jamais fizeram coisa alguma a prometer uma
enorme competência num novo governo ou num governo novo!
Não
deve ser fácil pedir para quem mandava. A competição faz surgir
uma dimensão esquecida do papel de administrador público — aquele
que depende do seu lado lamentavelmente apagado: o eleitor. O homem
comum que não tem puxa-sacos e mordomias. Que mal educa os filhos;
que teme a violência e enfrenta todas as filas. Inclusive a do voto.
Trata-se
de uma reviravolta dramática porque surge numa moldura de temível
igualdade e numa indeterminação competitiva que amedronta. Na
eleição, todos dependem de uma conjuntura imprevista que corrói
fachadas. Ademais, como competir num país que, mesmo adotando a
democracia, ainda chama de “bate-boca” e toma como agressividade
discordâncias legítimas?
Seria
o medo do retorno do nosso velho companheiro? O famoso autoritarismo
risonho, doce e feito sob medida para o povo e de quem discorda e ao
qual critica? Esse neofascismo que permitiria permanecer décadas no
poder porque somente assim o Brasil pode mesmo ser arrumado, cuidado
e consertado?
A
ausência de valores e a política como um campo no qual os fins
justificam brutal e abertamente os meios, inventa um tempo patético
e arriscado. A palavra final não está mais com o governante, mas
com o eleitor. Com a opinião pública que o neofascismo nacional
sempre odiou, porque ela cria novos fatos para quem, no poder, pensa
que não está sujeito a nenhuma circunstância.
Subitamente,
vejam que enrascada, a democracia no seu implacável trabalho de
igualar, desequilibrar e limitar, mostra que o papel que ocupávamos
não é nosso, mas pertence a esse povão que governamos e que aceita
e acredita em (quase) tudo.
Roberto
DaMatta é antropólogo
Comentários
Postar um comentário