Nessa altura quase tudo já foi dito sobre João Ubaldo Ribeiro, a quem tive o prazer de entrevistar duas ou três vezes ao longo dos anos. Ubaldo foi daqueles casos cada vez mais raros no Brasil de intelectual que, apesar da independência de suas opiniões e atitudes – não puxava o saco de ninguém, não se esforçava para ser simpático com ninguém – era admirado por todos. Avesso a poses, quando foi eleito para a Academia Brasileira de Letras o cumprimento que mais lhe agradou foi o de um gari que o reconheceu numa calçada do Leblon, abriu os braços e gritou: “Imortal!”
Apesar de ter enveredado por diversos gêneros – contos, crônicas, ensaios, literatura infanto-juvenil – João Ubaldo Ribeiro foi sobretudo um romancista: Tinha o gosto da narrativa longa, que lhe permitia construir pequenos mundos e grandes metáforas, tecendo sem pressa os fios invisíveis que unem personagens e situações e dão à obra um sentido maior. Por conta do êxito do extraordinário “Vida o povo brasileiro”, contudo, seus outros romances costumam ser pouco lembrados. Vale, portanto, uma breve recapitulação/contextualização da evolução de sua obra.
O primeiro romance, “Setembro não tem sentido”, foi escrito aos 22 anos, em 1963, mas permaneceu inédito por vários anos. Nesse período, Ubaldo ganhou uma bolsa de estudos e viajou para os Estados Unidos, para fazer um mestrado em Ciência Política. De volta ao Brasil em 1965, lecionou por um breve período na Universidade Federal da Bahia, mas acabou desistindo da carreira acadêmica para se dedicar ao jornalismo e à literatura. Com dois padrinhos de peso – Glauber Rocha e Jorge Amado, Ubaldo finalmente lanço “Setembro...” em 1968. Com humor debochado e enredo não-linear, o romance mostra momentos da vida de um grupo de intelectuais baianos durante a semana da pátria, revelando a contradição entre a vida simbólica da nação, com o apelo ao respeito cívico, e os impasses cotidianos da vida real.
Em 1971 Ubaldo lançou "Sargento Getúlio", inspirado num episódio da sua infância no Sergipe, envolvendo um certo sargento Cavalcanti, que, após levar 17 tiros num atentado, foi socorrido pelo pai de Ubaldo, que era chefe da polícia, e sobreviveu. Elogiado por Antonio Cândido, esse romance filiou Ubaldo a uma vertente literária com raízes em Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, explorando o tema do banditismo no sertão por meio de uma linguagem coloquial e cheia de regionalismos.
Depois de passar nove meses como professor convidado do International Writting Program da Universidade de Iowa, o escritor lançou em 1979 "Vila Real", breve romance sobre os conflitos rurais que narra a luta de camponeses numa cidadela fictícia do sertão contra a “Caravana Misteriosa”, apelido de uma empresa mineradora que lhes toma as terras. É mais uma denúncia da perpétua injustiça social no Nordeste brasileiro.
A consagração veio mesmo com o épico “Viva o povo brasileiro”, de 1984. Explorando episódios reais de nossa História, da ocupação portuguesa e da vinda da família real ao Estado Novo e à ditadura militar, Ubaldo revisita de forma satírica 400 anos de formação da identidade nacional, com uma galeria de personagens antológicos, de múltiplas classes e etnias. Tão grande foi o sucesso do livro que os romances posteriores do autor ficaram um pouco à sombra, talvez injustamente.
Com elementos de ficção científica – um médico que se utiliza das instalações de um hospital público para realizar uma série de experiências genéticas, criando uma espécie de raça híbrida humana-reptiliana – “O sorriso do lagarto” (1989) é talvez a narrativa mais cruel do autor, , no sentido de mostrar a escrotidão estrutural da sociedade brasileira, introjetada por membros de todas as classes sociais. A história se passa na fictícia Ilha de Santa Cruz, espelho da Itaparica natal de Ubaldo e do próprio país.
Seguiram-se “O feitiço da Ilha do Pavão” (1997), passado no tempo do Brasil Colônia, uma fantasia que envolve feitiçaria e erotismo e explora, mais uma vez, aspectos da formação do caráter do povo brasileiro; “A casa dos Budas ditosos” (1999), as cômicas memórias sensuais de uma mulher de 68 anos, parte da coleção “Plenos Pecados”; “Miséria e grandeza do amor de Benedita” (2000), lançado originalmente no formato digital, sobre as aventuras de um Don Juan nordestino; ”Diário do Farol” (2002); uma exploração ficcional das origens e limites do mal absoluto; e “O albatroz azul” (2009), um romance estranhamente sereno e crespuscular, que inclui uma reflexão sobre a morte e a espiritualidade. Ubaldo preparava um novo romance e um livro sobre histórias de botequim.
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